Fabrício fala da experiência de formar tripulantes de navios de cruzeiro
Ele também é um dos idealizadores de um projeto para formar jovens em situação de vulnerabilidade
14/11/2021 - domingo às 07h00A temporada brasileira de cruzeiros 2021/2022 começou no dia 5 deste mês, com a chegada do navio MSC Preziosa ao Porto de Santos. Um evento muito aguardado, já que a pandemia forçou a interrupção das atividades em março do ano passado e o cancelamento da temporada 2020/2021.
Com a retomada, é grande o número de pessoas que buscam trabalhar como tripulantes de navios de cruzeiro. É uma oportunidade de conhecer outros países e ganhar em dólar ou euro. Mas esse serviço exige muito preparo. E foi pensando nisso que o vicentino Fabrício Brito idealizou em 2007 a criação de um curso para formar profissionais especificamente para essa área. E de lá para cá, já foram mais de 18 mil.
Em 2020, Fabrício se viu obrigado a suspender as aulas presenciais em virtude da pandemia. Então, com a ajuda de um sócio, transferiu para o formato on-line toda a sua metodologia de ensino, baseada na experiência que adquiriu em 20 anos a bordo de navios. Assim foi criada a Deck 4, hoje considerada a maior plataforma de ensino à distância voltada para a formação de tripulantes de navios de cruzeiros.
Nas 9 perguntas desta entrevista de domingo do Portal BS9, Fabrício Brito fala sobre os desafios de um tripulante, o mercado de trabalho e o projeto social Jovens Tripulantes, voltado para formar jovens em situação de vulnerabilidade e que tem como um de seus parceiros o Instituto Neymar Jr., em Praia Grande.
1 - O que motivou você a criar uma plataforma para formar tripulantes de navios de cruzeiro?
Na verdade, a resposta não é o que me motivou, mas quem motivou a criação de uma plataforma para formar tripulantes. Eu já realizo esse trabalho desde 2007, formando tripulantes para navios de cruzeiro. E por conta da pandemia, um grande amigo, que é um empresário bem arrojado, um cara diferenciado, à frente do nosso tempo, veio me propor a ideia de que poderíamos migrar do presencial para uma plataforma de educação à distância. Então, impulsionado pela criatividade, pela visão e pela inteligência desse meu sócio, transformamos toda a expertise do nosso trabalho de formar tripulantes de navios de cruzeiro, migramos tudo isso para o digital. Entendemos que, com o digital, nós poderíamos alcançar rapidamente mais pessoas e ainda oferecer um produto muito mais caprichado, arrojado, aos alunos de todo o mundo. A partir do momento em que estamos dentro do digital, conseguimos atingir os países de língua portuguesa e até espanhóis, já que não existe no mundo uma plataforma de educação à distância que não faz o trabalho que nós fazemos, muito segmentado.
2 - Basicamente, o que os alunos aprendem?
Os alunos aprendem como funciona a operação de um navio em seus mais variados níveis. Os alunos aprendem como é o trabalho das mais variadas funções dentro dos departamentos que o setor de hotelaria oferece. A bordo nós temos três divisões, três setores: a ponte de comando, a casa de máquinas e o departamento de hotelaria. O departamento de hotelaria é aquele que mais oferece oportunidades de trabalho. Nele se encontram as camareiras, os bartenders, os garçons, o entretenimento, o shopping, o salão de beleza, enfim, tudo o que dá vida ao navio. Já nos departamentos técnicos, que têm a ver com formação náutica, com a Marinha, com a parte técnica de engenharia e tudo o mais, as vagas não são destinadas a brasileiros. Então, os alunos da Deck 4 aprendem tudo sobre hotelaria marítima, que é completamente diferente da hotelaria de terra. E aprendem muito sobre as competências socioemocionais. As empresas internacionais, as empresas de luxo buscam profissionais diferenciados. Então, é isso que a gente faz. É levar para essas pessoas que apostam no nosso treinamento, no nosso trabalho a sofisticação, a gentileza, a delicadeza. São valores muito apreciados na hotelaria. Então, além de toda a parte técnica que os alunos vão aprender a respeito dos setores deles, dos procedimentos sanitários, de todas as curiosidades, de toda a capacitação técnica que eles recebem, ainda trabalhamos a questão das competências socioemocionais, que são importantíssimas nos dias de hoje.
3 - Os alunos recebem algum tipo de preparo para lidar com a questão da distância de familiares e amigos?
Os alunos recebem todo tipo de preparo para lidar com qualquer situação de conflito. Seja uma distância dos familiares, dos amigos, seja a questão de relacionamento, de assédio... tudo o que se possa imaginar a respeito de uma adaptação a um mundo novo. Sabemos que eles vão sentir saudade, que eles vão chorar, que eles vão ficar muito cansados, que vai chegar uma hora em que o trabalho vai ser estressante e que eles vão se sentir confinados, enclausurados. Tudo isso já foi pensado dentro da nossa metodologia. São conteúdos mais voltados à orientação vocacional, conteúdos preparados por psicólogos, por pessoas que trabalham a bordo há muitos anos. Foi tudo foi muito pensado desde o começo de uma maneira muito sensível. Porque você não precisa preparar só um excelente bartender, uma excelente camareira. Você tem que preparar um profissional equilibrado, que entenda as questões da saúde mental, que entenda que vai para um ambiente multicultural. Lá ele vai conhecer novas culturas, vai precisar se adaptar, mudar o pensamento dele, estar aberto e ser uma pessoa flexível para entender e fazer outras leituras das pessoas, do mundo, das situações. Então, tudo isso é muito bem pensado na criação da nossa metodologia, que já formou e mudou a vida de mais de 18 mil pessoas. Consideramos que esse seja o nosso grande diferencial. Trabalhar essa questão humana, com esse olhar mais sensível aos nossos alunos.
4 - Um dos módulos do curso é educação financeira. O fato de ganhar em dólar ou euro cria uma confusão na cabeça de um tripulante?
Na verdade, a educação financeira não é um módulo. A educação financeira é tema de algumas aulas dentro do módulo principal, que é formação profissional do tripulante. E ali falamos de planejamento estratégico, projeto de vida, de como o aluno precisa se organizar para não ter a sensação de que está desperdiçando dinheiro. Explicamos como é a questão do ganhar em dólar e pensar em real. Nós damos uma base bastante intensiva para para que o aluno compreenda que um salário hoje em dólar pode mudar a vida dele e de toda a família se ele for disciplinado, organizado, estratégico e seguir as orientações que damos nos nossos cursos, sobretudo nessas aulas de educação financeira. Ainda sobre isso, é claro que é muito impactante para um aluno que provavelmente estava desempregado ou passou por um período complicado em terra antes de embarcar, e se vê a bordo, depois do primeiro mês, ganhando mil dólares, o que hoje no Brasil daria uma média de R$ 5.400. Então imagina para uma pessoa que não tinha perspectiva de nada, que mal conseguia um trabalho, de repente ir para um navio e começar a ganhar um salário de 5.400. É normal que ela, se não tiver preparo, se vislumbre, não entenda o que fazer com o dinheiro. Então nós nos preocupamos muito em orientá-los nesse sentido.
5 - O projeto Jovens Tripulantes é voltado para jovens em situação de vulnerabilidade. A abordagem com eles é diferente?
A abordagem com os (alunos do) Jovens Tripulantes é bem parecida com a que usamos com todos os nossos alunos da Deck 4 também. Não tem tanta diferença. A maior diferença está no convencimento e quando levamos essa proposta às entidades parceiras, as ONGs ou às comunidades. Sobretudo pelo fato de que os jovens com mais vulnerabilidade não entendem que esse sonho, que essa realidade pode também fazer parte da vida deles. A gente tem uma juventude hoje no Brasil que, infelizmente, não tem sonhos. É muito difícil hoje um jovem refletir, parar e pensar "eu quero ser um engenheiro, um arquiteto". O nosso país é muito injusto, sobretudo para a nossa juventude. Quantos filhos e quantas pessoas não precisam parar os estudos para poder ajudar em casa, para poder colocar sustento nas suas mesas, ajudar seus pais? E quantas crianças, quantos jovens, nesse sentido, acabam perdendo a possibilidade de estudar? Sabemos que só a educação transforma a vida das pessoas e a nossa juventude não está tendo tempo para estudar, não está tendo condição de estudar e quando tem o ensino é muito ruim. Então, quando levamos essa proposta para as periferias, para as instituições, para as ONGs, nossos parceiros, a abordagem só é diferente na hora de convencer esse jovem, de mostrar para ele uma realidade que também pode ser dele. E demora um tempo até ele entender que está dentro do processo, que também faz parte desse jogo e que vai ter condições de mudar de vida. É um trabalho difícil, mas bastante prazeroso. Porque quando eles entendem o que significa o projeto e que isso pode, de fato, mudar completamente a vida deles, o destino deles e da família deles, aí é um trabalho alucinante, que só gera, até hoje, resultados incríveis.
6 - Para um tripulante tem muita diferença entre os cruzeiros nacionais e internacionais?
Não existe nenhuma diferença entre cruzeiros nacionais e internacionais. Os meninos embarcam para fazer um contrato com tempo determinado. Os contratos dos tripulantes brasileiros são internacionais. Então, não existe relação alguma com a nossa CLT. São contratos regidos pela Organização Internacional do Trabalho e que passam também pela Convenção Marítima do Trabalho, de 2006. Uma convenção que foi assinada por vários países do mundo e o Brasil se tornou um dos países signatários recentemente, em março de 2021. E com isso, os nossos tripulantes passam a ser tratados e a ter todos os mesmos direitos que os de todo o mundo, de todos os países que são signatários dessa convenção.
7 - A temporada de cruzeiros teve início com protocolos sanitários mais rígidos. Os tripulantes estão sendo mais exigidos no cumprimento dessas medidas?
Os tripulantes de navios de cruzeiro já estão muito acostumados a protocolos muito rígidos. As companhias de navios já fazem regularmente todo esse trabalho de prevenção de contaminações e doenças. O navio sempre foi um ambiente fechado, de fácil proliferação de vírus, doenças e tudo o mais, até pelo próprio sistema de ar-condicionado, pela aglomeração de pessoas. Todos esses cumprimentos de medidas, já faziam parte da rotina de um tripulante, da rotina de um navio. Então, tudo o que vem por conta do combate à Covid-19 é só mais um protocolo entre os inúmeros que sempre existiram. Sempre foi muito rígido, muito minucioso esse trabalho de vigilância sanitária, de saúde, de prevenção, de higiene a bordo dos navios. Nós temos nos nossos módulos aulas específicas de limpeza e higiene para cada setor, para cada departamento. Isso sempre foi um ponto muito forte no preparo, no treinamento e na qualificação profissional desses tripulantes de navios de cruzeiro. Então, na realidade, não houve grandes mudanças porque a gente já está acostumado a esses protocolos há muitos anos.
8 - Com essa retomada da temporada de cruzeiros, você tem notado uma procura maior por mão de obra especializada?
A procura sempre foi grande. É claro que hoje, depois de um período de quase dois anos de estagnação, de recolhimento total dos navios, em que muitos tripulantes ficaram em casa, perderam seus empregos, com o turismo sendo uma das áreas mais afetadas por conta dessa pandemia, é natural que essa retomada seja um pouco mais frenética, animada. Mas, de fato, existe vaga o ano inteiro, a procura rola o ano todo. Porque não param de inaugurar, de desenvolver navios novos. Todo ano as mais importantes armadoras do planeta inauguram dois, três navios. A frota de navios mundial aumenta exponencialmente a cada ano. Então, a oferta de trabalho vai consecutivamente aumentar. Tem muita vaga para quem quiser, a procura não para o ano todo. Além disso, as companhias devem contratar 15% de tripulantes brasileiros para operarem legalmente em território nacional, em águas brasileiras. Isso facilita, faz com que o campo de trabalho aumente, com que a oferta seja maior. E graças a essa lei, quando, de fato, começa ou está para começar a temporada brasileira, a procura acaba sendo muito maior.
9 - Você já trabalhou por muito tempo como tripulante e já passou por vários lugares. Qual foi a experiência mais curiosa ou inesquecível que você já viveu a bordo?
A experiência mais incrível que eu vivi a bordo foi quando fui promovido a oficial. Eu, na época, era diretor de eventos do navio e tive a missão de organizar o primeiro fretamento do cruzeiro Emoções em Alto Mar, do Roberto Carlos, a bordo do navio MSC Preziosa. Eu tinha a responsabilidade de fazer com que aquele fretamento de três dias com o rei da música brasileira fosse um verdadeiro sucesso. Isso significa gerenciar uma equipe de quase mil pessoas. Contato com a cozinha, com a segurança, com a direção de cruzeiros, com a recepção. Eu precisava coordenar com todas as equipes do navio como seria a operação, a logística desses três dias de viagem que, naquele período, era muito importante para a companhia que eu trabalhava. Era a primeira vez que o Roberto Carlos estava fazendo um cruzeiro na nossa companhia. Nós precisávamos garantir que esse trabalho fosse realizado com excelência para que ele pudesse renovar o contrato e voltar a fretar o navio, a trabalhar conosco. E eu acho que consegui fazer um bom trabalho. A viagem foi muito boa e hoje eles seguem com a MSC Cruzeiros. De fato foi uma das experiências mais incríveis que eu vivi ao longo dos 20 anos que trabalhei a bordo.