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ENTREVISTA DE DOMINGO

Autista que cursa Medicina, Arthur quer ser o "Bom Doutor" da vida real para pessoas como ele

Como o personagem da série, que tem Transtorno do Espectro Autista, o jovem de Praia Grande já enfrentou muito preconceito

Alexandre Fernandes - Redação BS9

20/03/2022 - domingo às 00h00

Arthur diz que seu maior objetivo é garantir um acesso democrático tanto à informação quanto aos direitos para cada pessoa autista - Foto: BS9

Arthur Ataíde Ferreira Garcia é um jovem de 18 anos que há cerca de um mês iniciou o curso de Medicina na Unaerp de Guarujá. Seu sonho é se tornar psiquiatra.

Focado nesse objetivo, deixou a casa em Praia Grande, onde vivia com os pais, Marcelo e Morgana, e o irmão Breno, e foi morar sozinho perto da universidade.

Arthur é muito inteligente. Tem facilidade para aprender idiomas. Os óculos até lhe dão um ar meio nerd, mas se engana quem pensa que sua vida se resume apenas a estudar. Gosta de dançar hip-hop e é fã de ícones da cultura pop japonesa, como, por exemplo, o Ultraman.

Depois de todas essas informações, faz diferença para você se revelarmos que Arthur tem Transtorno do Espectro Autista (TEA)? Porque para muita gente não fez, e isso não foi nada bom para ele.

Entre essas pessoas estavam professores que tratavam seu distúrbio como um retardo mental e até psiquiatras que pouco se esforçaram para ajudá-lo a entender por que era daquele jeito.

Arthur só recebeu o diagnóstico aos 11 anos, pouco depois de saber que o irmão, três anos mais novo, também tinha TEA. E mesmo depois disso, teve de lidar com muito bullying e preconceito.

O curioso é que o TEA é mais comum do que se imagina. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que uma em cada 160 crianças no mundo apresenta esse transtorno do neurodesenvolvimento, que pode se manifestar de várias formas, como dificuldade de comunicação, comportamentos atípicos, entre outras.

É por tudo isso que Arthur quer ser psiquiatra. O estudante quer ajudar mais ainda as pessoas com autismo e suas famílias. Isso mesmo, mais ainda. Afinal, desde os 13 anos ele já dá palestras sobre o assunto.

Uma de suas inspirações é o doutor Shaun Murphy, protagonista da série The Good Doctor: O Bom Doutor. A atração mostra justamente os problemas e conflitos que o personagem vivido pelo ator Freddie Highmore enfrenta por ser autista, apesar de seu extremo talento como médico.

Para Arthur, chegou a hora de as pessoas com TEA terem cada vez mais figuras inspiradoras, mas de carne e osso. E faltando praticamente duas semanas para o dia 2 de abril, Dia Mundial de Conscientização do Autismo, o futuro psiquiatra concede essa Entrevista de Domingo para o Portal BS9, mostrando que a pessoa com TEA pode até ser diferente, mas é gente como a gente.

Por que você quis estudar Medicina?
A vontade de fazer Medicina sempre foi algo que esteve intrínseco na minha pessoa. Eu já tinha uma vontade muito grande de seguir na Medicina, na área de pesquisa, desde pequenininho. Porque isso tudo começou ao saber que a minha mãe tinha uma doença autoimune degenerativa. Ela tem artrite psoriásica. Então, quando eu era pequeno, já pesquisava muito sobre área da saúde, até pra eu ter uma noção maior do que ela estava passando. Conforme eu fui crescendo, fui percebendo o quão próximo essa área estava de mim pelas tantas vezes que eu ia em psiquiatras pra tentar entender melhor como eu era, o porquê de eu ter dificuldades que eu tinha, por que eu não era igual às outras crianças da minha idade.

Você falou que passou por vários psiquiatras. Você acha que a maioria deles não se mostrou preparada para diagnosticá-lo?
Tinha uma demora muito grande nesse esforço pra eles tentarem entender, pra eles tentarem me diagnosticar. Eu percebia que faltava uma vontade. Eram sempre consultas robóticas, sem um elemento humano lá dentro, como se só quisessem atender o paciente e liberá-lo mais rápido possível. Com isso, eu só via meus pais tentando ainda mais tentando se desdobrar, encontrar profissionais bons pra levar tanto eu quanto o meu irmão e nunca tinha resultado algum. Então, a partir do momento em que eu recebi o meu diagnóstico, pude começar a entender melhor o que eu passei. E eu consigo entender que aquela demora foi porque esses profissionais não estavam preparados pra entender o que é autismo, não sabiam o que era autismo.

E esse despreparo que você aponta se deve a quê? Preconceito?
É uma soma de um preconceito que já está internalizado nessa área e também das cicatrizes que a psiquiatria carrega aqui nesse país. Se você parar pra pensar, até 20, 25 anos atrás, pessoas como eu eram trancafiadas em centros manicomiais, em sanatórios que eram verdadeiras prisões. Na verdade, eram piores do que prisões. Nós éramos tratados pior do que os piores estupradores, do que os piores assassinos. O único crime que tínhamos cometido era o de nascermos diferente das outras pessoas. A psiquiatria foi quem permitiu essa tortura manicomial. A psiquiatria foi quem incentivou que pessoas autistas fossem vítimas de eletrochoques, lobotomia, de todas as torturas imagináveis e até mesmo inimagináveis. A área que permitiu isso por tanto tempo não ia mudar tão rápido em 20, 25 anos. Até hoje ela carrega essas cicatrizes. Então, eu percebo que se eu quero que ela mude pra que mais nenhuma pessoa autista sofra com ela, pessoas autistas precisam estar lá dentro. Porque quem melhor vai garantir que nós sejamos compreendidos? Somos nós mesmos. A psiquiatria carrega muitos profissionais que não sabem direito o que é autismo. Muitos, inclusive, incentivam o pensamento de que pessoas autistas não podem progredir. Se você for pesquisar ou se consultar com alguns psiquiatras, vai ver que vários deles têm como postura mais característica dizer que autistas não podem chegar a lugar algum, desestimular completamente pais de pessoas autistas a colocarem seus filhos nos estudos e incentivarem que eles sigam os seus sonhos.

Se você já sentiu isso de psiquiatras, então você, muito provavelmente, foi vítima de bullying, não? Principalmente na escola.
Na escola e na vida em geral. Se eu luto tanto contra o preconceito e o bullying hoje em dia é porque eu vivenciei na pele os males que isso pode causar na cabeça de uma pessoa. Desde pequeno eu ouvia frequentemente mães falando, reclamando na escola, que não queriam que brincassem com um garoto estranho. Isso antes mesmo onde eu receber o meu diagnóstico. Nessa época eu não não sabia por que me achavam estranho. Só sabia que eles não gostavam de mim por eu ser do jeito que era. Tinha vezes em que os professores entregavam os convites das festinhas de aniversário dos colegas de classe. Entregavam de um em um, e eu, mesmo estando no meio da fila, era ignorado. Passavam a minha vez, não me entregavam, não me convidavam pra nada. Os meus colegas também acabavam espelhando esse preconceito que muitas vezes vinha dos pais. Vários colegas usavam muito contra mim o termo retardado. E quando eu ia tentar conversar com a escola, quando eu ia tentar cobrar um posicionamento, tudo que eu ouvia era que a culpa era minha de sofrer aquele bullying. Porque eu não me esforçava o suficiente pra ser que nem as outras crianças. Eu já tive, sim, muitos professores que me apoiaram muito. Mas um episódio recorrente na minha vida era de professores fazendo questão de dizerem que todo o meu esforço seria em vão. Que, no máximo, a única coisa que eu iria trazer pra vida dos meus pais seria a despesa e vergonha. Que o mais próximo que eu chegaria de trabalhar num hospital seria como paciente de um sanatório. Um vez uma professora até chegou a dizer pra mim que se eu quisesse tentar ser um médico, tinha um jeito muito fácil, que era tentar em outra vida.

Mesmo assim, você continuou estudando. Havia algo, ou alguém, na escola que o deixava motivado?
Algo que me incentivava eram gestos mais simples, vindos, por exemplo, das pessoas da limpeza da escola. Enquanto os professores diziam que eu não era capaz, os funcionários da secretaria diziam que eu era, sim. E mais importante: mesmo que todos os meus colegas dissessem que eu nunca ia conseguir atingir nada, eu tinha um amigo que fazia tudo isso parecer mentira. Ele sempre fazia questão de dizer que, se eu podia ser um amigo tão incrível pra ele, eu podia fazer tudo que eu quisesse. Durante a maior parte da minha vida, eu não tive amigos porque as outras crianças olhavam pra mim como uma criatura exótica. Mas esse amigo que eu tive sempre valeu por mim muito mais do que dezenas de amizades que eu poderia ter. Quando você tem alguém que deseja o seu bem, que torce por você, já faz toda a diferença. Isso eu sempre tive com a minha família. Mas ter um amigo da sua idade faz toda a diferença. Se eu não tivesse tido amizade com ele, hoje em dia eu só conseguiria conversar com adultos da idade do meu pai, da minha mãe. Conforme eu fui crescendo, fui encontrando mais pessoas que compartilhavam ideias parecidas com as minhas. Incluíram meu irmão, que também sofre dessas mesmas coisas que eu sofri.

Quando você teve o diagnóstico? E qual foi a sua reação?
Fiquei ciente aos 11 anos. Ao receber o meu diagnóstico, eu a única coisa que eu senti foi uma felicidade extrema. Porque, enfim, consegui entender quem eu era, por que eu passava por aquilo. E não tinha nada de errado porque eu já sabia que meu irmão era assim. E agora eu entendia que essas coisas pelas quais eu e ele passamos sempre foram tão parecidas por um motivo. Eu consegui carregar com muito mais leveza e entender também as coisas que eu precisava pra eu me desenvolver. Ferramentas que eu precisava para a minha inclusão.

Qual é, na sua opinião, mportância do diagnóstico precoce?
O diagnóstico é a ferramenta que nos dá acesso aos nossos direitos como pessoas autistas, que nos dá acesso às ferramentas que são importantes pra nossa inclusão. Se não fosse pelo meu diagnóstico, eu mesmo não ia ter chegado onde eu estou agora. Eu não teria acesso às ferramentas que me possibilitaram ter acesso aos vestibulares e até mesmo à escola. Se eu não tivesse o meu diagnóstico, estaria até hoje me culpando por ser diferente dos outros. Porque eu não ia entender que não tem problema eu ser diferente. A minha diferença é só mais uma das formas de como a humanidade pode se manifestar.

A universidade lhe dá algum auxílio, alguma bolsa de estudos?
Eu entrei com um requerimento de bolsa na universidade e ela está analisando o pedido. E eu desejo muito que isso tenha resultado porque acredito que não só a faculdade pode agregar na minha vida com todas as ferramentas que ela vai fornecer pro meu desenvolvimento acadêmico e profissional. Acredito que eu também posso agregar para essa universidade. Cada trabalho que eu fizer relacionado à inclusão, cada palestra que eu apresentar estando lá, não vai ser só um trabalho meu. Vai ser um trabalho incentivado pela oportunidade que eu estou tendo de estudar. Cada coisa que eu adquirir lá e que eu usar para o meu trabalho vai ser revertido em atenção pra eles também. Ou seja, a universidade também tem a ganhar com isso, né? Toda repercussão positiva que o meu trabalho tiver vai também pra eles, porque vão ser eles que vão estar apoiando esse trabalho.

Qual é o seu objetivo como psiquiatra?
Meu maior objetivo é garantir um acesso democrático tanto à informação quanto aos direitos pra cada pessoa autista. Eu planejo como psiquiatra trabalhar incessantemente em pesquisas de formação científica que acompanhem o desenvolvimento de pessoas autistas e mostrem e evidenciem o quanto coisas como o diagnóstico tardio ou a falta de acessibilidade podem ser empecilhos no desenvolvimento delas. Existem pouquíssimas pesquisas nessa área aqui no Brasil. Então, eu planejo usar tudo que eu tiver à minha disposição pra elucidar cada vez mais as pessoas. Porque a melhor forma de você garantir acessibilidade é começando do início. E no início a gente começa a combatendo o preconceito. Muitas pessoas que carregam esse preconceito dentro de si não o carregam por ódio, não o carregam por raiva ou até desprezo. Às vezes, elas só carregam isso porque elas não entendem. E realmente não dá pra você entender aquilo que é diferente de você quando não existe informação. Eu planejo como psiquiatra ser um agente transformador, que esteja lá para as pessoas autistas, não só como um médico robótico que vai atendê-las e só esperando elas saírem logo do consultório. Eu quero estar lá pra ajudar a guiar o desenvolvimento dessas pessoas.

Como você conheceu a série The Good Doctor: O Bom Doutor? O que ela representa para quem tem TEA?
Quando eu descobri a série, foi antes mesmo de ela ter sido lançada. Uma professora por quem tenho muito carinho conversou comigo assim: "Arthur, você viu que os mesmos produtores da série do Doutor House também estão produzindo agora uma série sobre um médico autista?" Ela sabia que eu queria fazer medicina. E eu falei "Sério? Poxa, que incrível!". Isso é fenomenal porque era uma forma de eu visualizar aquilo que ainda não tinha segurança de acreditar que era capaz de atingir. É um incentivador porque as pessoas autistas não têm muita representatividade na mídia. Várias vezes, quando nos representam, nos colocam como pessoas incapazes ou até figuras que só trazem problemas pra quem está ao redor delas. Mas essa série fala sobre o quanto a nossa inclusão na sociedade agrega pra sociedade. O doutor Shaun mostra que sendo incluído no mundo hospitalar, em todo o campo da medicina, ele traz coisas que mais ninguém além dele poderia trazer. As pessoas autistas podem trazer perspectivas que nenhuma outra pessoa pode trazer. Afinal, o que garante as nossas perspectivas, o que garante as nossas ideias, são as nossas diferenças. Essa série foi algo que me ajudou a visualizar isso, ajudou a visualizar meu objetivo de forma mais direta. Mostrando que as vivências que acontecem comigo, meu irmão e vários outros autistas estão recebendo mais voz.

Para terminar, fale um pouco dos seus pais, que sempre estiveram ao seu lado nessa caminhada.
Eu posso dizer que meus pais são o combustível do meu sucesso, a força motriz que despertou o meu desenvolvimento. Eu posso usar quantos adjetivos quiser, mas não vai, não vão ser o suficiente pra descrever a grandeza do amor que eu sinto por eles. A maioria das pessoas autistas que eu já conheci na minha vida sempre disse que uma coisa que pesava muito era o fato de que além da sociedade em si não compreendê-las, às vezes elas não tinham uma relação tão próxima com a família. Mas eu sempre tive uma relação extremamente próxima com os meus pais. Eles sempre estiveram do meu lado pra tudo. Meu pai e minha mãe, quando receberam meu diagnóstico, não viram isso como um luto ou qualquer coisa do tipo. Eles não tiveram uma visão estigmatizada ou com preconceito. Eles perceberam que aquilo era uma oportunidade que eles tinham pra entender melhor o filho deles, eles usaram essa oportunidade pra fazer tudo o que estava ao alcance deles e fazem até hoje. Cada conquista que eu tenho, cada degrau que eu subi na escada da minha vida foi porque eles estavam me apoiando. Meu pai e minha mãe são tanto meus heróis quanto meus anjos da guarda.

Arthur concedeu a entrevista na redação do Portal BS9, na companha de seus pais, Morgana e Marcelo - Foto: BS9

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