Jamir Lopes - Gestor e Produtor Cultural
Jamir Lopes
05/03/2022 - sábado às 00h00
A Semana de 22 é um dos marcos simbólicos mais importantes da cultura brasileira, mas não representa nem o começo nem o ápice de um movimento que atravessou as décadas e até hoje provoca controvérsias. Apenas trinta e quatro anos separam a abolição da escravatura no Brasil do maior evento de arte moderna do século 20. Ainda assim o protagonismo ali era único e exclusivamente voltado para os filhos da elite paulistana, cujos pais eram os ex-senhores de engenho de trinta e quatro anos antes. Mas não é só isso. Esses mesmos filhos da elite cafeicultora de São Paulo refletiam em seus trabalhos temas brasileiros distintos, baseados, sobretudo, no folclore “nativo” e nas “lendas rurais”, algo que, lido com as lentes de hoje, facilmente seria interpretado como apropriação cultural. Todavia, o principal objetivo da Semana de Arte Moderna de 1922 foi repensar de maneira crítica o tradicionalismo cultural daquele tempo, então associado às correntes literárias e artísticas europeias, muito ligadas ao parnasianismo e ao academicismo formal.
O que tornou histórico e tão relevante o que aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo em 22 foi a organização do primeiro movimento cultural no Brasil - mesmo que formado por um grupo de elite pequeno, formado por intelectuais, pintores, escultores, músicos e escritores. Tais como Menotti Del Picchia, Mário e Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Graça Aranha, Heitor Villa-Lobos, Di Cavalcanti, entre outros, que se reuniram para se posicionarem coletivamente por modernização estética, mudanças e para mostrarem suas obras e releituras. A missão destes artistas era a ruptura com o velho e a divulgação da dita arte moderna aos brasileiros. Contudo, as ideias modernistas já circulavam muito antes da realização da Semana. O evento pontuou um momento de curva dessa busca por renovação.
Dentre as ramificações que surgiram posteriormente à Semana de Arte de 1922 se destaca o “Movimento Antropofágico”, surgido em 1924, com a publicação do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” de Oswald de Andrade. O conceito antropofágico acreditava na “devoração”, “digestão” e “deglutição” das influências estrangeiras que subsequentemente seriam vomitadas pelos artistas com as cores, demandas e questões de uma utópica cultura “essencialmente brasileira”. Mas o que é esse “essencialmente brasileira” se o mesmo não for expelido pelo seu próprio povo? “Por seu próprio povo” entenda-se pretos, pardos e indígenas, ou seja, os excluídos, os “objetos de estudos”, os narrados e quase nunca narradores de suas próprias histórias. Eis essa uma das principais problematizações ou controvérsias acerca da Semana de Arte de 1922, sob o ponto de vista crítico do século 21. Muito embora tenha surgido no espírito vanguardista de seu tempo, tal movimento, na verdade, foi uma extensão do projeto colonial fomentado sob a guia de grandes cafeicultores e cujas estrelas eram direta ou indiretamente ligadas à ex-escravocratas de uma elite rural. Segundo o professor Carlos Berriel, do Departamento de Teoria e História Literária da UNICAMP, a Semana de Arte Moderna de 1922 foi, no plano ideológico, a iniciativa de uma oligarquia racista, reacionária e ao mesmo tempo modernista. Para servir aos interesses de classe da elite cafeicultora e a um projeto de hegemonia paulista, que via o Brasil como uma colônia a ser explorada pela metrópole de Piratininga. Mesmo autores como Mário de Andrade foram próximos a esse projeto, cuja justificativa é construída no livro "Retrato do Brasil", de Paulo Prado, cafeicultor, historiador e grande mecenas da Semana de 22, comentou o professor.
Incomodado com a hegemonia paulista no imaginário nacional, conquistada pelos modernistas da Semana de 22, Ruy Castro acaba de lançar o livro "As vozes da Metrópole", em que recupera autores "esquecidos" do Rio de Janeiro de 100 anos atrás. Benjamim Costallat (1897-1961), João do Rio (1881-1921) e Agrippino Grieco (1888-1973) são alguns desses literatos resgatados. Castro vê neles uma postura muito mais inovadora do que a dos que se consolidaram como "modernistas". "Eles são a prova de que, em 1922, já se escrevia moderno no Brasil, ao contrário do que pregavam os modernistas. Os autores incluídos no meu livro tinham, inclusive, inúmeras preocupações sociais, como racismo, violência contra a mulher, internação psiquiátrica compulsória, condições de vida nas prisões, etc.. Ao contrário dos modernistas, que eram intelectuais de salão, alienados, e só pensavam em estética, tipo combater o soneto e a Academia." Castro afirma que os modernistas paulistas não buscavam "nenhuma brasilidade", limitando-se a realizar aqui uma releitura do que se fazia na França. Enfim, eles não seriam os "inovadores", como se tornaram conhecidos, pois a inovação modernista já ocorria em outros grupos, anteriormente. Na música, o compositor e autor Lívio Tragtenberg também censura a ausência da vibrante cena que já ocorria no Rio de Janeiro. O autor do livro “O que se ouviu e o que não se ouviu na Semana de 22” aponta que na então capital do país havia "um desenvolvimento de uma riqueza de misturas e de interações muito anteriores à Semana de 22". "Já se misturava a música de salão europeia com a música dos negros e a que se fazia nos bares e cafés. Quando a Semana estava acontecendo, Pixinguinha [1897-1973] era presença em Paris, exportava a música feita aqui, antes do Heitor Villa-Lobos (1887-1959), que participou do evento." O compositor salienta que "nem passou pela cabeça daqueles que organizaram a Semana considerar a música popular". E, nesse sentido, ficaram de fora, além de Pixinguinha, nomes como Donga (1890-1974) e João da Baiana (1887-1974).
Hoje entre releituras, críticas e controvérsias pipocam pelo Brasil centenas de eventos, exposições, livros, palestras e debates programados para celebrar o centenário da Semana de Arte Moderna de 22. Agenda e atividades organizadas pelas mais variadas instituições culturais, prefeituras e outros órgãos públicos que, a meu ver, deveriam priorizar a ressignificação da "Semana”. Que necessita de fato ser criticamente reposicionada, sobretudo no lugar do resgate histórico de artistas não brancos cuja trajetória e trabalho foram apagados por conta do racismo estrutural na engrenagem da arte contemporânea brasileira. Atualmente toda a nossa sociedade precisa criar um novo e imenso movimento para as artes brasileiras do século 21 – que outrora era um lugar fechado num núcleo branco, masculino e elitista – para uma nova tomada artística, ética e étnica que represente a diversidade de um Brasil que quer ter autonomia sobre suas próprias narrativas. Como “Pensar é Resistir” termino este texto convidando a todos para fazerem uma necessária reflexão, sobre o nosso imaginário cultural, social e político: Afinal o que é ser “moderno” ou “inovador” hoje no Brasil?
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