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Pele Alvo - A cor da violência e da exclusão

Jamir Lopes - Gestor e Produtor Cultural

Jamir Lopes

05/02/2022 - sábado às 00h00

“Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?”

Castro Alves que escreveu estes versos, parte do poema O Navio Negreiro, nasceu em 1847, no interior da Bahia. Viria a ser considerado, anos depois, o maior poeta do romantismo brasileiro. Neste poema o autor questionou se Deus sofria ou eraindiferente à sorte dos negros injustiçados e escravizados. Ele não se conformava com o fato de milhões de negros, arrancados do chão africano, arrastados a ferro, seguirem feitos bichos para o inferno. Os canaviais, as minas de ouro e diamante, bem como os cafezais do Brasil, onde eram sugados até a última gota do sangue. O autor criticava a nação brasileira da época, a forma de colonização adotada, que teve como base a desumanização do negro, onde era permitido todo tipo de atrocidade, até mesmo contra crianças, mulheres e idosos africanos. Ainda hoje, não consigo ler Castro Alves sem que alguns dos meus músculos fiquem tensos e sem que os meus olhos fiquem marejados. Todos os meses, semanas e dias atuais que a imprensa nacional repercute a morte de algum irmão negro me traz o sentimento destes épicos versos e fragmentos de Castro Alves. O revoltante caso do congolês que foi morto no quiosque Tropicália no Rio de Janeiro, na noite de segunda-feira (24), após cobrar R$ 200 do seu pagamento atrasado, não foi diferente dos milhares de outros casos de racismo que acontecem no Brasil dia após dia. A barbárie sofrida por Moïse Kabamgabe só ganhou repercussão cinco dias depois do ocorrido, quando a comunidade congolesa do Rio de Janeiro decidiu fazer um protesto em frente ao estabelecimento no último sábado (29). Moïse foi agredido por quatro homens durante 15 minutos e recebeu 30 golpes com um bastão de madeira. Além das pancadas, os agressores deram "mata-leão", socos e amarraram mãos e braços de Moïse com cordas, até a morte.

“E ri-se a orquestra irônica, estridente
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais!
Qual umsonho dantesco as sombrasvoam...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás! “

O brutal assassinato de Moïse só evidencia como o racismo estrutural é a marca da sociedade brasileira. Vivemos num país onde o peso da herança escravocrata ainda se faz presente em nosso cotidiano, em pleno século XXI. Temos o Estado, a Polícia e grande parte da burguesia branca do nosso país, todos cumplices desta barbárie diária. Querem apenas manter as relações sociais, os espaços de poder e as coisas como sempre foram... O crime contra Kabamgale, além de expressar o racismo brasileiro, manifestou o preconceito contra o estrangeiro, sobretudo quando este estrangeiro é uma pessoa negra, como era o caso deste jovem de 24 anos, que fugiu da República Democrática do Congo (RDC) quando ainda era adolescente na tentativa de evitar os confrontos étnicos decorrentes da Guerra Civil de 2003, em seu país de origem.

Um recorte estatístico importante para analisarmos, não por acaso, é o fato que no Brasil atual, em pelo menos seis estados, uma pessoa negra é morta em ações policiais a cada quatro horas. É o que aponta o estudo recente da Rede de Observatórios da Segurança, intitulado „Pele alvo: a cor da violência policial", que foi divulgado em dezembro de 2021, com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação. A pesquisa detalha a situação de cada região do Brasil. Foram 2.653 mortes provocadas diretamente pela polícia, sendo 82,7% delas de pessoas negras. Entre os estados do país, o Rio de Janeiro é o que mais apresenta homicídios de pessoas negras, em números absolutos, durante ações policiais, com 939 registros entre os 1092 mortos que tiveram a cor informada. Já São Paulo, estado mais populoso do país, apresenta o segundo maior número de assassinatos de pessoas negras. Sabemos que a ideia de Polícia no Brasil está estritamente vinculada ao poder e à proteção das elites. No geral as nossas polícias em todos os estados brasileiros são instituições altamente impopulares, elitistas e se orgulham disso.

Na madrugada desta última quinta-feira, dia 03/02, em São Gonçalo, também no Rio, aconteceu mais um caso de racismo, violência e covardia. Um sargento da Marinha, identificado como Aurélio Alves Bezerra, atirou três vezes e matou o próprio vizinho, Durval Teófilo Filho, de 38 anos. Ele apenas tentava abrir o portão do condomínio onde morava, após sair do trabalho, quando foi atingido na barriga. Durval, que é negro, foi morto pelo militar após o atirador “justificar” que achou que se tratava de um assaltante.

Sem demérito para outras pautas sociais e políticas, os inúmeros assassinatos de negros no Brasil seria razão mais do que suficiente para multidões de pessoas antirracistas brancas e negras ocupassem as ruas do país em protesto, cobrando os políticos, autoridades e instituições por justiça, igualdade e representatividade. Como estão fazendo a maioria dos movimentos negros em várias cidades do país. Mas a morte e a tortura de pessoas negras pelas mãos do Estado, da Policia, da iniciativa privada, de milicianos ou de outros cidadãos não vale uma simples seção de bateção de panelas da nossa burguesia verde-amarela. Os inúmeros casos de racismo, é óbvio, nunca foram acidentes ou casos isolados. Mas parte de um projeto de exclusão violenta e covarde contra a população negra e pobre, em nome da manutenção de privilégios.

“Existe um povo que a bandeira empresta
Pra cobrir tanta infâmia e cobardia!
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta...
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa…chora, echoratanto.
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...”

(Fragmentos do Poema O Navio Negreiro - Castro Alves, 1870).

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal BS9

 

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