Maurício Juvenal - Jornalista, especialista em Pesquisa Social e mestre em Letras
Maurício Juvenal
07/08/2021 - sábado às 15h51
Não sei exatamente o motivo, mas acordei no final dessa madrugada – entre outros com o compromisso de escrever esse artigo mensal e que pra variar deixei para o último dia do prazo – com a palavra utensílio na cabeça. Não lembro de ter sonhado, não lembro de ter sido esse um tema presente na minha jornada de ontem, ter lido ou ouvido algo a respeito, mas ele está aqui, circundando meu pensamento, nesse início de manhã.
Pois, então, cederei à pressão. Dá conta o dicionário que utensílio é um substantivo masculino, por definição qualquer objeto que facilite a vida diária, que tenha utilidade. São tantos, não é mesmo? Não sei se é por conta do horário, mas me vem à cabeça, de bate pronto, aquele suporte plástico para coador de café, em geral vermelho, comum em qualquer cozinha, até mesmo nas que já adotaram as modernas máquinas de café em cápsula.
É óbvio que em termos de real utilidade nem um outro utensílio supera hoje o aparelho celular. Ele dorme com a gente, acorda com a gente, confortavelmente acomodado ali no criado mudo, ao lado da cama. E nos acompanha até no banheiro. Reformas mais moderninhas já estão contemplando uma tomada USB ao lado do vaso sanitário. Não é, confesso, o meu utensílio preferido, mas sem dúvida é o mais utilizado por mim.
Tenho observado nesse vai e vem da vida cotidiana, relações diversas que têm transformado pessoas em utensílios, o que é pior do que transformá-las em objeto. Na objetificação, tratamos as pessoas de fato como se elas fossem uma matéria pronta para o uso e descarte, incapazes de despertar em nós qualquer sentido de utilidade que vá além daquele específico que está composto e firmado em nosso imaginário.
Impossível não fazer referência aqui à questão da “mulher objeto”, expressão bastante abordada ao longo da década 90 e até hoje – ainda que com um tratamento linguístico e verbal mais moderno – como reflexo de uma cultura patriarcal que entendia o homem como provedor e a mulher como dele dependente. O contrato social, celebrado de forma tácita, previa que as mulheres, por serem sustentadas pelos maridos, cuidassem dos afazeres domésticos, da prole, e os satisfizessem sexualmente. E nada mais!
Ainda nesse viés da objetificação, um exemplo clássico, mas que graças a Deus vem perdendo espaço, é a forma como a mulher durante muito tempo foi retratada em campanhas publicitárias, com a literal objetificação do corpo feminino, atribuindo a ele a função exclusiva, ou emprestando o singular papel, de mero objeto de prazer sexual masculino.
Claro, é horrível tudo isso, e a evolução da sociedade tem permitido, ainda que não seja na velocidade desejada, identificar as atitudes que reforçam essa cultura e ao mesmo tempo combatê-las.
O problema é que surge agora um novo comportamento, tão ou mais nocivo quanto, que imprime o status de “utensilização” das pessoas. Nesse cenário, o agressor reconhece no outro todas as suas capacidades, possibilidades e potencialidades e empreende uma série de estratégias de controle e manipulação, com o objetivo exclusivo de ver e ter seus interesses atendidos.
Uma dessas estratégias, muito comum no mundo da política e dos negócios, é conhecida como “teoria da cenoura”. Em linguagem figurada, o manipulador amarra uma haste a partir do pescoço do manipulado, e que passa sobre a cabeça, com uma cenoura amarrada na ponta. A cenoura seria o prêmio pelo desempenho, pela entrega compromissada. O problema é que a recompensa pelo trabalho, pela ajuda, pelo fazer, nunca é alcançada ou entregue. A cenoura é mantida ali na frente, fora do alcance da boca. E assim as pessoas vão sendo usadas, mediante promessas ou propostas de troca que nunca se concretizam.
E você pode estar se questionando se alguém é tão ingênuo assim, nos dias de hoje, de ficar correndo atrás da cenoura, sem nunca a alcançar. Respondo que muitos de nós, o tempo todo, em muitas das nossas relações. Somos naturalmente alimentados pela esperança, por boas expectativas, somos sonhadores e solidários, acreditamos, apostamos e em geral temos imensa dificuldade de dizer não. Acabamos usados. E acabamos usando os outros também.
A questão que tento colocar é justamente a de um chamado à consciência sobre o quanto temos utilizado as pessoas como utensílios. O quanto temos cedido ao mecanismo de sedução do mal que nos leva a tratar os outros como instrumentos e não como pessoas. Satisfeitos nossos desejos e aspirações, graças aos esforços e suor do outro, não praticamos a reciprocidade.
É preciso não perder de vista que quando a gente se nega a enxergar o outro para além do que nele vemos de utilidade, o reduzimos exatamente a um utensílio, negando sua dimensão mais ampla e livre, o tratando, é verdade, como algo mais do que um objeto, mas que só pode ser isso ou aquilo, subtraindo toda a sua pessoalidade e riqueza mental e emocional.
Objetos podem ou não ter utilidade. Utensílios são sempre úteis para alguma coisa. E pessoas são pessoas, com dores, amores, sentimentos, tremores, delícias e horrores. Mas são pessoas antes de tudo, nem objeto e nem utensílio. Recorrendo a uma expressão muito comum no inglês, wearable, vestíveis, como a potencialidade de serem vestíveis, portanto, sem qualquer espaço para uso singular ou descarte.
Por fim, ainda que o poder que o mal nos proporciona nos seduza, o flerte despretensioso e ou inocente de tratar o outro como utensílio pode nos permitir, num primeiro momento, conseguir o que desejamos. Mas já a curto prazo não nos trará consciência tranquila e paz de espírito. Nem todas as mães fazem filhos espertos, é verdade, mas todas as mães fazem filhos que merecem e devem ser enxergados como indivíduos capazes, autônomos e iguais.
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