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Medida Provisória: o filme choca porque ao vivo é muito pior

Jamir Lopes - Gestor e Produtor Cultural

Jamir Lopes

05/05/2022 - quinta às 00h00

Dirigido por Lázaro Ramos, o filme Medida Provisória chegou em 14 de abril aos cinemas brasileiros e já se consolidou como a segunda maior estreia nacional do ano, atrás apenas de Tô Ryca 2, que fez R$ 2,2 milhões em sua abertura em fevereiro. Infelizmente na cidade de Santos, que tem como lema a “terra da liberdade e da caridade”, este aguardado filme só estreou no dia 21 de abril, uma semana após o lançamento nacional. Os cinemas do grupo Roxy do litoral paulista divulgou em suas redes sociais que “o filme foi apenas adiado por uma questão de readequação de agenda do filme na Baixada Santista”. Atitude no mínimo estranha e um desserviço à produção audiovisual nacional. Já que todos sabem que o mais importante para um filme é atingir o maior número possível de público, justamente na primeira semana de exibição, para conseguir ampliar o agendamento dos espaços nas salas exibição. Mesmo com problemas como este que vergonhosamente ocorreu no litoral paulista, o filme Medida Provisória atingiu logo na primeira semana em cartaz a marca de
100 mil espectadores e arrecadou mais de R$ 2 milhões entre os dias 21 (quinta) e 24 de abril (domingo). Já na segunda semana em exibição, o filme somou 237 mil espectadores no total.

Sobreviver pode ser um ato de desobediência civil. Esta frase resume bem “Medida Provisória”, primeiro filme dirigido por Lázaro Ramos, baseado na peça “Namíbia, não!” de Aldri Anunciação. Taís Araújo está no elenco na companhia de Seu Jorge, Alfred Enoch (da saga Harry Potter), Adriana Esteves, Renata Sorrah, Emicida e grande elenco – formado majoritariamente por negros na frente da tela e atrás dela, na produção do filme. A trilha sonora também é um ponto de destaque do filme. Nomes como Elza Soares, Liniker, Xênia França, Cartola e Rincon Sapiência emprestam suas músicas para a história.

A trama mostra o Brasil num futuro distópico no qual o governo emite uma medida provisória autoritária obrigando os negros do país a retornarem à África. A obra aborda um futuro não muito distante em que é instituído um autointitulado “programa de reparação” contra o racismo que primeiro estimula e depois obriga os negros do Brasil a migrarem para a África. É difícil saber se ela choca porque é muito real ou porque a realidade é muito mais violenta. Na história, após muito esforço, os descendentes de escravizados estavam prestes a serem indenizados financeiramente pelo sofrimento dos antepassados. Surge então a nova legislação: Medida Provisória 1888 da ficção, cujo número sarcasticamente remete ao ano da lei áurea. Sempre que um grupo oprimido parece começar a se aproximar de diminuir a opressão que sofre, há um grande incômodo e a reação “generosa” contra os “exageros identitários”. Como na vida real, no filme os racistas incomodados bradam com firmeza que não são, nem jamais foram racistas.

Historicamente o desejo de branqueamento da população brasileira tem precedentes legais muito fortes. A Constituição de 1934, por exemplo, determinava que cabia à União, aos Estados e aos Municípios estimular a educação eugênica. Renato Kehl, fundador da Sociedade Eugênica de São
 
Paulo nesta mesma época, defendia a segregação entre brancos e negros e a esterilização de todos os negros e indígenas. Outros eugenistas eram entusiastas da miscigenação, mas também a viam como forma de apagar traços genéticos de negros e indígenas. Todos foram erigidos a norma constitucional. Programas de estímulo ou imposição da saída de pessoas pretas do Brasil com destino á África tampouco são fruto de criatividade exagerada dos artistas. Uma lei baiana de 1835 era mais cruel que a do filme. A lei nº 9, promulgada em 13 de maio, como se também fosse uma ironia intencional, determinava igualmente que todos africanos libertos ou escravos teriam que se mudar para qualquer país africano que fosse convencido pelo governo da província a recebê-lo. A dose adicional de crueldade é a seguinte: ainda pagariam um imposto anual, enquanto não encontrado seu destino.

Hoje, não temos leis em vigor que falem sobre deportação compulsória, mas existe ampla descriminação, falta de oportunidades e, principalmente, uma óbvia violência e política de extermínio dos jovens negros brasileiros. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pessoas negras foram 76,2% das pessoas assassinadas em 2020 e 78,9% das vítimas de intervenções policiais. A polícia brasileira é que mais mata no mundo e a que mais morre também. Resultado de uma gestão da segurança pública ineficiência e preconceituosa. Em Santos, por exemplo, a mesma polícia faz um tipo de abordagem nos Morros ou na Zona Noroeste da cidade e outra completamente diferente no Gonzaga - mesmo bairro nobre que foi divulgada recentemente a descoberta por vizinhos de uma senhora negra que por 50 anos foi vítima de trabalho escravo e violência física, por parte de uma família de alta renda que sequer teve os nomes de seus integrantes revelados pela imprensa local. Infelizmente a justiça não é igual para todos. Faz parte da cultura da polícia no Brasil ser racista, elitista e ainda se orgulhar disso. Tudo com o respaldo dos “cidadãos de bem” e das autoridades. A maioria da sociedade branca só quer manter os seus privilégios seculares.

O filme de Lázaro Ramos não destaca a expressão genocídio, mas trata dele, no mesmo sentido que aqueles intelectuais e militantes lhe dão. Nenhum deles imagina que haja alguém rindo enquanto conta corpos negros mortos. Mas, todos sabem que esses corpos incomodam que muitos se sentem mais felizes quando não os veem e que eles só tombam com tanta frequência porque há tolerância e indiferença por parte de autoridades e pessoas comuns da sociedade que juram que jamais foram racistas. Pura hipocrisia. Como bem disse o mestre, escritor e compositor Nei Lopes “O Brasil é um país altamente preconceituoso, racista e excludente”, sendo dever de todos, brancos e negros, ajudarem a transformar estas mazelas históricas em nosso país.

Se você caro leitor ou leitora ainda não viu, veja Medida Provisória. Quer seja nos cinemas ou em breve nas plataformas de streaming. Um filme necessário, que choca porque na realidade, ao vivo, é muito pior.

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