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A Cultura das Casas

Márcio Aurélio Soares

08/04/2025 - terça às 18h04

Acostumado com o “interior litorâneo” da cidade de Santos, fiquei impressionado com a imponência dos prédios históricos. Por um instante, me imaginei vivendo no século XIX. Como teria sido a vida das pessoas naquela época?

 

Os poucos filmes que retratam esse período da nossa história recente mostram bondes puxados por animais, senhores de terno e chapéu-palheta, senhoras de luvas três quartos — todos brancos. Não lembro de ver negros ou indígenas nessas cenas. Eram sempre pessoas que pareciam ter poder, prestígio, importância. As novelas de época reforçam esse imaginário: casais brancos de braços dados, passeando por calçadas de pedra, como as de Paraty ou Ouro Preto, enquanto os escravizados quase não tinham voz — figurantes em sua própria história. Um teatro do absurdo tropical: senhores de fraque suando sob o sol, enquanto homens e mulheres negras, invisíveis nos quadros, sustentavam suas estruturas.

 

Incongruência? Não. Projeto.

 

Em Imagens da Branquitude – A Presença da Ausência (2024), a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz analisa como a branquitude se manifesta nas representações visuais ao longo da história brasileira, revelando sua influência na construção de hierarquias raciais e sociais. A autora examina imagens — de pinturas e mapas a monumentos públicos e peças publicitárias — desde o século XVI até hoje, para mostrar como a cultura e a identidade brancas (europeias, diga-se) foram simbolicamente estabelecidas como norma dominante na sociedade brasileira.

 

Ao destacar a “presença da ausência”, Schwarcz nos convida a reavaliar criticamente o imaginário social que consumimos diariamente. Suas análises expõem a falsa neutralidade dessas imagens e revelam as estruturas de poder subjacentes. A obra propõe um letramento racial urgente, desnaturalizando as concepções racistas incrustadas na cultura visual brasileira.

 

Aqui vale lembrar: cultura não é só erudição, nem acervo de elite. Cultura é um conjunto de conhecimentos, crenças, valores, costumes, práticas sociais, tradições, expressões artísticas, linguagens e modos de vida que caracterizam um grupo ou uma sociedade. É tudo aquilo que o ser humano cria, compartilha e transforma ao viver em coletivo.

 

Erudição, por sua vez, é outro campo: um saber profundo e específico, muitas vezes elitizado e apartado do cotidiano. Pierre Bourdieu, um dos grandes pensadores do século XX, em A Distinção (1979), mostra como as classes dominantes se utilizam da ideia de “bom gosto” para se diferenciar e manter seus privilégios culturais, sociais e econômicos.

 

Se, no século XIX, a cultura branca eurocêntrica foi imposta como norma (Schwarcz), hoje, mesmo com transformações importantes, ainda vemos seus resquícios: na maneira como certas artes são valorizadas em detrimento de outras (Bourdieu), ou na forma como alguns grupos ainda ocupam mais espaços e microfones que outros.

 

Se a cultura já foi usada como ferramenta de exclusão, como podemos transformá-la em instrumento de reparação? Invertendo a lógica. Reconhecendo-a como direito, motor de desenvolvimento e instrumento de emancipação social. E mais: transformando isso em ações concretas do Estado — por meio de leis, programas, editais, espaços públicos e participação da sociedade civil.

 

Para romper com o espelho europeu que moldou (e muitas vezes ainda molda) nossa ideia de cultura, é preciso escuta. É preciso mapear artistas, práticas e demandas culturais; garantir recursos públicos, descentralizar investimentos e valorizar todas as formas de expressão — não apenas as “oficiais”, mas também as culturas afro-brasileira, indígena, LGBTQIA+, quilombola, periférica e popular.

 

Em Santos, por exemplo, a Casa das Culturas é um espaço público que carrega esse potencial. Localizada em um casarão histórico, abriga oficinas, exposições, lançamentos literários, encontros artísticos. Mais que um centro cultural, é um convite à diversidade e à presença. Que ela seja casa de muitas culturas, como seu nome anuncia.

 

Que a cultura que um dia serviu à opressão, seja agora força viva de transformação.

 

Márcio Aurélio Soares é médico sanitarista e escritor. Caminha entre a saúde coletiva e a cultura, buscando escutar o que foi silenciado e recontar as histórias que a branquitude tentou apagar. Escreve para ampliar vozes e imaginar futuros mais justos.

 

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