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510 dias depois, o samba fez-se ouvir outra vez

Lúcio Nunes - Jornalista, colaborador da Liga Cultural Independente das Escolas de Samba de Santos (LICESS) e do Conselho do Samba de Santos

Lúcio Nunes

03/08/2021 - terça às 15h37

Ainda me lembro quando o último carro alegórico da Vila Mathias deixou a dispersão para cruzar a Passarela do Samba Dráuzio da Cruz e encerrar o desfile do Grupo Especial em 2020, com uma homenagem ao maquiador Di César e à diversidade, já sob a luz do dia.

Pela primeira vez tive a chance de acompanhar o desfile na pista, realizando a cobertura das apresentações para o Conselho do Samba e para a Liga Independente Cultural das Escolas de Samba de Santos (LICESS).  Só “escapei” para desfilar na Campeoníssima Brasil, honrosamente como um dos compositores de seu samba-enredo, e, como sempre, pela União Imperial, tradição que completava 20 anos.

Saí muito impressionado com o que vi com a atenção e o encantamento habituais, mas, daquela vez, mais de perto. O salto de qualidade dentro e fora da pista foi notório, deixando-nos ainda mais motivados a projetar o que poderia vir em 2021.

Algumas semanas depois, porém, o ‘enredo’ transformou-se completamente: o mundo se viu diante da pandemia da Covid-19 e nossas escolas de samba, ao invés de planejarem o futuro, ficaram totalmente à mercê do presente, afetadas pelas consequências da gravíssima crise sanitária e econômica.

A interrupção inesperada, ainda que inevitável, como se sabe, culminou com o cancelamento do desfile deste ano e trouxe um impacto profundo nas comunidades ligadas às agremiações, habitualmente já inseridas em um contexto de vulnerabilidade e risco social.

É sempre bom ressaltar: a cadeia produtiva do Carnaval, ainda que muitas vezes informal, é um ganha pão adicional para centenas de famílias da Baixada Santista – e em todo o país.
Elas transformam suas casas em ateliês, viram noites nos barracões e dedicam-se incansavelmente à produção do espetáculo, unindo o útil ao agradável – afinal, em sua maioria, são foliões apaixonados pelo samba e por suas agremiações.

Além disso, a estrutura do desfile, cada vez mais consolidada, oferece oportunidades para profissionais de diversas áreas: desenhistas, soldadores, marceneiros, decoradores, costureiras, atores, coreógrafos, músicos e tantos outros.

Por tudo isso, e pelo fato de que a realização do Carnaval em 2022 ainda depende não só de um controle efetivo da pandemia, mas também da viabilidade financeira e da readequação de cronogramas das escolas e da organização do evento, quero registrar aqui o providencial sopro de esperança que tivemos no último dia 9 de julho.

510 dias depois, graças à realização da 1ª Carreata Carnaval Solidário, iniciativa da LICESS em parceria com a Prefeitura de Santos, o tão esperado reencontro com o asfalto da Passarela do Samba Dráuzio da Cruz aconteceu. E mesmo diante de um formato completamente inusitado – e absolutamente necessário -, a experiência foi extremamente válida.

Enquanto os primeiros acordes de seus sambas-enredo ecoavam através das caixas de som, uma a uma, as escolas foram reaparecendo: e desfilaram com suas comitivas, trazendo carros devidamente decorados e, no interior deles, sorrisos que há muito tempo não eram vistos por ali.

Honrando a tradição dos desfiles ‘convencionais’, casais de mestre-sala e porta-bandeira bailaram à frente de cada uma delas. E no girar de cada pavilhão, atrevo-me a dizer, também estava representada a memória dos sambistas que, lamentavelmente, nos deixaram neste ínterim.

Não posso deixar também de mencionar a satisfação em reencontrar parte das novas diretorias da LICESS e do Conselho do Samba, lideradas, respectivamente, pelos presidentes Fábio Przygoda (recém-eleito) e Beto O Magistral (reeleito), que se empenharam e muito para mobilizar seus pares e garantir a realização da empreitada. Os desafios seguirão enormes para ambos, mas a primeira missão foi cumprida - e com louvor.

Saldo final:  6 toneladas de alimentos arrecadados, não só no dia do evento, mas também previamente, nas Quadras das Escolas de Samba. Eles foram doados ao Fundo Social de Solidariedade de Santos (alimentos não perecíveis avulsos) e, igualitariamente, entre as 16 escolas de samba e o Conselho do Samba (cestas básicas), para que pudessem amenizar temporariamente o grave cenário instalado em suas respectivas comunidades.

A força das escolas de samba, como se vê, ainda é perene. A inédita Carreata Solidária, em meio a um contexto tão conturbado, que inclui a atual sanha federal em desqualificar as manifestações legítimas da cultura popular, demonstra isso e certamente dará norte a outras ações.

Mas nem tudo dependerá somente da liga e das agremiações, claro. Entidades comunitárias, ONGs, empreendedores locais, poder público, meios de comunicação e iniciativa privada precisam prestar mais atenção ao potencial transformador que as escolas de samba possuem em suas comunidades, especialmente em um eventual cenário de pós-pandemia. Com parceria, sinergia e responsabilidade social, todos serão beneficiados. 

 

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